Deu na Nature
(agosto-setembro de 2005): “A leitura de Harry Potter e o enigma do
príncipe, de J.K. Rowling, sugere que a bruxaria é uma habilidade herdada
dentro de padrões mendelianos, com o gene ‘bruxo’ (W) recessivo ao gene
‘trouxa’ (M). Daí que todos os bruxos têm, portanto, duas cópias do gene
‘bruxo’”, escreveram três pesquisadores do Chromosome Research do Royal
Childrens Hospital (“Harry Potter and the recessive allele”). Na edição
seguinte, outro grupo de cientistas, dessa vez da Universidade de Cambridge,
usando um bom trocadilho, retrucou a hipótese em “Harry Potter and the
prisioner of presumption”: “Pelo raciocínio exposto, Hermione, uma bruxa
nascida de ‘trouxas’, precisaria ter pais WM. Mas, como sabemos, esses são
dentistas e trouxas, sem nenhum histórico de bruxaria familiar. A hipótese de
que a bruxaria seja hereditária, portanto, não se sustenta”.
Você pode
até se dar ao luxo de não entender a discussão genética, mas se não conhece
Harry Potter, Hermione e não sabe qual a diferença entre bruxos e trouxas,
considere-se, respeitosamente, um alienado. Uma pesquisa no Google revela muitos milhões de referências ao bruxinho de Hogwarts, em todas as línguas possíveis,
de fãs ardorosos a críticos milenaristas, para quem Harry ensinaria magia negra
às crianças. Sem falar nos artigos em revistas especializadas, nos quais
acadêmicos distintos dissecam os mais variados aspectos da criação de Rowling,
cujo sétimo e último volume com milhões de leitores se encantaram com o mundo fascinante da magia!
Mais: uma
pesquisa feita pelo jornal Folha de S.Paulo revelou que, embora
destinados ao público infanto-juvenil, os livros da série estavam sendo lidos
por “quatro em cada cinco entrevistados com mais de 25 anos”. Os mesmos
resultados já tinham sido obtidos no exterior. “Adultos: não continuem fugindo
da vida”, sapecou um crítico inglês no The Independent. “Há porém razões
de sobra para compreender isso. Vivemos imersos durante um longo período na
mais profunda hegemonia da racionalidade iluminista. Não que o mito e a magia
tenham deixado de coexistir; persistiram latentes, às margens da razão. Mas
talvez essa não esteja mais dando conta de explicar a contemporaneidade; houve
necessidade, portanto, que fossem buscados outros instrumentos e repertórios
capazes de enfrentar o desafio da (in)compreensão”. Estaríamos hoje em busca do tempo perdido das maravilhas? Ulisses e as sereias, na Odisséia,
de Homero. “Entre mito e razão, ele encara o supremo desafio: perder-se no
passado mítico (responder ao chamado das sereias) ou acionar as teias da razão
e, com elas, prender-se ao mastro, ouvir o canto, deleitar-se com ele, mas
seguir em frente?” A contragosto, ele foi. E com esse gesto de ir adiante Ulisses se torna um ser moderno,
posicionado ambiguamente, de costas para o mito e de cara para a razão, sabedor
de que, se não estivesse de mãos atadas, não resistiria ao chamado das belas
moças aquáticas. Assim não há como negar que estamos vivendo um momento propício à
volta do maravilhoso, do qual a volta das fadas e da magia é apenas um
sintoma.
Estamos tentando re-encantar a vida. Onde o bruxinho de óculos
entra nessa história? Há algo mais, que faz de Potter o herói de sucesso: as
circunstâncias que o levam a lutar contra o malvado Voldemort. O órfão se
transforma assim em vingador de seus pais e salvador do mundo. Ou seja, ele
encarna um paradoxo: é livre para realizar exatamente os sonhos mais ambiciosos
de seus pais. Que liberdade é essa? A contradição faz de Harry um compêndio da
glória, das dores e das ilusões de nossa subjetividade contemporânea. Mas como
interpretar então os tantos milhões de leitores? É melhor
tentar entender o gosto dos leitores em vez de avaliar se o gosto alheio está
certo ou errado. No entanto, sabemos que a crítica literária quase
nunca aprova obras de grande circulação. É um policiamento: se todos gostam,
não é bom. Basta lembrar no Brasil os casos de Jorge Amado e Erico Verissimo, de
público fiel e maltratados pela crítica”.
A literatura infantil
e infanto-juvenil padece de um preconceito duplicado com essa mesma crítica. A
fantasia é componente indispensável do texto dirigido à infância e, por isso,
ela parece banir dos livros o realismo. O resultado disso é mais uma
comprovação do desprestígio da literatura infantil. E assim a
fantasia é importante subsídio para a compreensão do mundo pela criança. Ela
ocupa as lacunas que o indivíduo tem durante a infância, devido ao
desconhecimento do real, e ajuda-o a ordenar suas novas experiências. A
fantasia também pode tomar a configuração do sonho enquanto desejo
insatisfeito. É essa significação que o ente maravilhoso, presente no conto de
fadas, pode corporificar: representará o adulto onipotente, aliado e bom, que
soluciona o problema maior do herói”. Historicamente porém, na passagem
do relato folclórico à literatura infantil, perdeu-se, o conteúdo
de rebeldia: o herói se sujeita à dominação do adulto. “Pomo de ouro” para
Harry.
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